Neste post, vou analisar o filme Frozen, da Disney, com o intuito de refletir sobre algumas orientações morais derivadas, direta ou indiretamente, das propostas éticas de Nietzsche e Freud. Como a maioria deve saber, Frozen conta a história de Elsa, uma princesa que nasceu com poderes mágicos ligados ao gelo, e Anna, sua irmã. Quando crianças, as duas eram muito próximas e passavam o dia brincando no amplo espaço do castelo em que nasceram (Arendelle). Os poderes de Elsa tornavam as brincadeiras mais interessantes, permitindo, por exemplo, que as irmãs construíssem um boneco de neve no meio de um salão de festas vazio. Não sabendo controlar seus poderes, porém, Elsa acaba machucando sua irmã em uma dessas brincadeiras. Depois desse episódio, os poderes de Elsa passam a ser vistos como perigosos, e seus pais se empenham em reprimi-los. A parte inicial da principal música do filme, Let it go, descreve bem o que os pais (e, com base neles, a própria Elsa) acreditam que precisa ser feito com os poderes: “esconda, não sinta, não deixe ninguém saber, seja a boa garota que você sempre foi”.
Os “poderes” de Elsa podem ser lidos como uma representação de seus impulsos. A percepção de que tais impulsos podem ferir, de que há algo de perigoso neles, faz, portanto, com que Elsa cresça procurando reprimi-los. O “trauma” relacionado ao episódio em que ela machuca sua irmã e uma educação parental focada na repressão colocam-na nesse caminho.
O caráter perigoso dos impulsos, com efeito, parece já ser indicado pela própria natureza gélida dos “poderes” e por sua relação com o inverno, que nos levam a pensar neles como uma espécie de pulsão agressiva ou de morte (tomando como base o imaginário europeu, no qual o inverno está diretamente associado à morte). No filme, de fato, os poderes gélidos vão se contrapor adiante aos poderes do amor, ligados ao calor e ao verão. É difícil não relacionar tal oposição àquela proposta por Freud entre pulsão de morte e pulsão erótica (ou libido, ou pulsão de vida). Também os termos “trauma” e “repressão”, que utilizei acima para descrever o que se passa no filme, são, como se sabe, de origem psicanalítica. Estamos lidando, portanto, com uma problemática claramente relacionada à psicanálise. Isso não significa, porém, que a “moral” do filme, supondo que possamos identificar uma, esteja alinhada à orientação ética da psicanálise – ou, colocando de modo mais preciso, a alguma orientação ética que possa ser considerada de base psicanalítica, pois aqui adentramos um terreno da psicanálise repleto de conflitos.
Para seguir com a análise, vejamos como se desenrola a trama do filme: os pais de Elsa e Anna morrem em um naufrágio quando as duas são adolescentes. Ao se tornar maior de idade, Elsa é coroada rainha – momento no qual precisa sair do isolamento e aparecer publicamente em uma cerimônia. É um momento delicado. Elsa está com os nervos à flor da pele e uma briga com a irmã a leva ao descontrole. Ela solta uma rajada de gelo no salão de festas, assustando os convidados e, desesperada com o extravasamento de seus “poderes”, foge, congelando tudo ao seu redor. Depois de correr sobre o mar congelado, ela começa a subir uma cadeia de montanhas e chega ao mais alto pico da região. Aí tem lugar o clímax do filme. Elsa libera seus impulsos e os utiliza criativamente, construindo um sublime castelo de gelo e transformando-se. Essa liberação dos impulsos é verbalizada na letra da música Let it go, que ela canta nesse momento:
É engraçado como certa distância / Faz tudo parecer pequeno / E os medos que antes me controlavam / Não me afetam mais / É hora de ver o que eu posso fazer / De testar os limites e superá-los / Sem certo, sem errado, sem regras para mim / Estou livre!
Em outro momento dessa mesma música, Elsa constata, alegre, que “aquela garota perfeita se foi” — ou seja, que ela está livre da compulsão de idealizar um eu subordinado às regras sociais. E termina com a constatação de que o frio nunca a havia incomodado – sugerindo, parece, que a necessidade de repressão de seus impulsos não vinha de uma repulsa em relação a eles, mas era efeito do medo de causar sofrimento em outros ou simplesmente da interiorização irrefletida das regras sociais.
Mencionei anteriormente a psicanálise como referencial teórico mais evidentemente ligado às questões tratadas no filme. Porém, após a cena de liberação de Elsa nas montanhas, acima descrita, é impossível não lembrarmos também das propostas éticas de Nietzsche, especialmente aquelas apresentadas em Assim falou Zaratustra. Zaratustra, que aparece nesse livro como porta-voz das propostas do filósofo, foi ele próprio para as montanhas, onde “gozou do seu espírito e da sua solidão” por dez anos, até sentir necessidade de distribuir sua sabedoria como o sol distribui sua luz. Zaratustra então desce e profere diversos discursos, nos quais fala de ideais de distância do rebanho, que quer sempre o mais fácil e confortável; ideais de uma superação de si impulsionada pela solidão (ou relações de amizade potencializadoras) em algum lugar no qual a atmosfera é dura e o ar rarefeito; ideais de liberdade em relação às regras sociais estabelecidas e de criação de novos valores; ideais de afirmação da própria potência e de negação da repressão dos impulsos com base na compulsão de nunca causar ou experimentar sofrimento.
Referências às montanhas, ao ar frio e rarefeito e à superação dos próprios limites aparecem várias vezes no Zaratustra. Um de seus discursos, intitulado “Das moscas do mercado”, por exemplo, termina com a seguinte admoestação: “foge, meu amigo, para a tua solidão e para onde o ar é rude e forte!”. Em outro, “O canto noturno”, Zaratustra caracteriza a vontade potente, dura e inexorável como “frieza”, devido ao fato de ela não absorver a luz de outros por ser ela própria fonte de luz. Já em “O andarilho”, Zaratustra se descreve como um escalador de montanhas e fala para si mesmo: “Segues teu caminho de grandeza: tornou-se teu último refúgio o que até então era teu último perigo!”.
Essas palavras de “O andarilho” poderiam perfeitamente descrever o que Elsa pensa consigo no momento de sua “liberação”. E é importante apontar que tanto no caso de Elsa quanto, principalmente, no de Zaratustra, a liberação não deve ser vista como um novo ideal de redenção – o que colocaria em primeiro plano a negatividade das regras e não a afirmação de novos valores. Ao contrário, diz Zaratustra em “Do caminho do criador”: “Livre de quê? Que importa isso a Zaratustra! Mas teus olhos devem claramente me dizer: livre para quê?”. Também Elsa não pretende remoer seu passado, experimentando-o como a negatividade de um momento presente supostamente pleno, mas deixá-lo “enterrado na neve” e construir sobre ele.
Tivesse o filme terminado com a cena da liberação de Elsa, ou seguido com uma eventual descida de Elsa das montanhas, muitos anos depois, para doar sua potência a quem ficou na planície e exaltar as possibilidades de superação de si, poderíamos, com efeito, enxergar nele muitos ecos da ética nietzschiana. A própria representação dos impulsos como poder — e um poder ligado à criação e superação de si — poderia nos levar a enxergá-los com base na “vontade de poder” concebida por Nietzsche. Não é esse, porém, o caminho que o restante do filme nos indica.
Quando Elsa subiu para as montanhas, deixou Arendelle e toda a região ao seu redor congelada. Como descreve Anna em algum momento do filme, Elsa “congelou o verão”. Esse acontecimento parece querer mostrar o impacto negativo da jornada de auto-superação de Elsa para a “sociedade”. Anna, que, na ausência de Elsa, fica no comando do castelo, assume o papel de representante da sociedade e segue para o castelo da irmã com o intuito de restaurar o verão — ou seja, o bem-estar social.
Com a ajuda de Christoph, um comerciante de gelo que figura na trama como uma espécie de “homem conectado à natureza”, Anna finalmente chega ao castelo. O encontro das duas irmãs é um ponto de virada do filme. A partir dele, os “poderes” de Elsa voltarão a aparecer sob uma luz negativa e sua “liberação” e “potencialização” serão relativizadas. Logo no início do encontro da irmãs, uma tentativa de aproximação por parte de Anna faz Elsa relembrar seu “trauma” — que, portanto, de acordo com a sabedoria psicanalítica, permanecia vivo no inconsciente, longe de ter sido superado. Perturbada, Elsa manda Anna embora e foge para o andar superior. Anna, porém, persegue a irmã e lhe faz ver o efeito da liberação de seus poderes em Arendelle e na comunidade que vive lá. Elsa, que até então não tinha nem mesmo percebido tais efeitos, fica desesperada, dilacerada pela culpa. Nesse estado de descontrole emocional, no qual Elsa se ataca mais uma vez e volta a enxerga seus poderes como “maldição”, ela acaba “congelando o coração” de Anna.
Ou seja, percebemos que a jornada de auto-liberação e superação de Elsa não a transformou tanto quanto a cena-clímax do filme sugeria. Seu supereu, para voltar ao registro da psicanálise, continua forte, e pronto para torturar seu eu com sentimento de culpa. Sua vinculação com a irmã e, por meio dela, com a sociedade, é o elemento dentro de Elsa que a leva, de novo, a um estado de impotência e desarranjo interior. Esta nova má consciência de Elsa, porém, tende a aparecer no filme como “moralmente justificada”, por ser mais diretamente ligada à culpa de causar sofrimento ao outro. A nova submissão de Elsa à moral ficará ainda mais evidente nas próximas cenas.
Após o conflito com a irmã, Elsa continua em seu castelo, sem saber o que fazer, e vivendo em luta interior. Após algum tempo, um pequeno grupo de voluntários de Arendelle, liderados pelo príncipe Hans, invade sua morada. Atacada por uma parte da comitiva que desobedeu as ordens do príncipe, Elsa se defende e, furiosa, encontra-se pronta para matar seus adversários quando Hans intervém, dizendo: “Elsa, não se torne o monstro que eles acreditam que você é”. Elsa é tocada pelo apelo moral de Hans e hesita. Por fim, um pedaço do palácio de gelo cai perto de Elsa, deixando-a desacordada. O príncipe a leva de volta para Arendelle e a coloca na prisão.
Para resumir o final do filme, que envolve diversas viradas narrativas que não nos interessam: Anna descobre que apenas um “ato de amor verdadeiro” poderia curar seu coração congelado. Elsa escapa da prisão e quando está prestes a ser morta pelo príncipe Hans, que traiu as irmãs para subir ao trono, Anna, mesmo em estado terminal devido ao coração congelado, consegue intervir, jogando-se na frente da espada. Nesse momento ela se congela totalmente, de modo que a espada resvala no gelo e não atinge ninguém. O ato de se jogar na frente da espada, aceitando sacrificar-se para salvar a irmã, é o ato de amor que cura o coração de Anna e a faz voltar ao normal. Esse ato de Anna faz Elsa perceber o poder do amor dentro dela também. Com tal amor ela consegue controlar seu poder gélido e utilizá-lo, a partir de então, para o “benefício” de Arendelle.
A relação de Elsa com seus impulsos gelados, que é o que nos interessa mais de perto neste post, portanto, pode ser dividida em quatro fases: a fase de repressão e medo do poder dentro dela; a fase de liberação e autosuperação; uma nova fase de conflito interior, desencadeada pela culpa de ter causado sofrimento a outros; um controle não conflituoso do poder com base no amor.
Como notei anteriormente, os desdobramentos da terceira e quarta fases nos levam a encarar a liberação/autosuperação de Elsa ocorrida na cena-clímax do filme como essencialmente falha. Elsa não conseguiu criar um deus de seus sete demônios, para falar como Zaratustra. A lição ética que podemos derivar daí parece ser a da impossibilidade (e indesejabilidade) de “transcender” o rebanho em nós. A vida em meio ao ar gélido e rarefeito do si mesmo é frágil e será sempre perturbada novamente devido à sua incompatibilidade com a parte de nós ligada à vinculação social. Nesse ponto, aproximamo-nos novamente de Freud, para quem a incompatibilidade entre id e supereu é a marca do humano, e o máximo que poderíamos almejar seria uma mediação eficaz do eu entre essas duas partes inconciliáveis. Em seguida, porém, o filme nos afasta também de Freud, apresentando um caminho de redenção baseado no amor. O único caminho verdadeiro para “superação” dos conflitos interiores, parece sugerir o filme, é o do amor, que integra nossos impulsos ao bem social.
Cabe questionarmos então, que tipo de “amor” é esse que, no filme, integra tudo, levando a um estado de felicidade e plenitude. Sabemos que tipo de amor, desde há muito, no Ocidente, apresenta-se como redentor: o Amor cristão. Costumeiramente, porém, no registro cristão, o Amor oferece não uma integração dos impulsos e do bem-estar social, mas uma submissão dos impulsos, encarados como algo maldito, e uma aproximação de um Bem transcendente — Deus. Se, hoje, podemos conectar de alguma maneira ao cristianismo esse amor que se apresenta como uma força imanente que permite conectar o eu aos outros e a uma especie de ordem natural, isso se deve mais à absorção, pelo cristianismo, de certas visões éticas do que de uma proposta ética propriamente cristã.
Para entendermos o amor redentor que nos é apresentado em Frozen, parece-me, devemos olhar para certas derivações das propostas éticas de Nietzsche e Freud. Esses dois pensadores, como sabemos, recusam-se a acreditar em qualquer tipo de redenção. O primeiro oferece uma recusa alegre — uma vez que a própria vontade de redenção é vista por ele como sinal de um estado de impotência –, o segundo, uma recusa resignada. Ainda assim, aqueles que precisam justificar a vida com base em algum Ideal redentor não deixarão de encontrá-los mesmo em propostas éticas nas quais eles não se encaixam de maneira alguma. São muitos os que utilizam os pensamentos de Nietzsche e Freud para inventar novas formas de redenção. Acredito que é atentando para o desdobramento dessas formas que poderemos compreender melhor as fontes éticas do amor redentor apresentado no final de Frozen. Como um estudo de tais propostas redentoras nos levará a longas reflexões, e este post já está muito longo, continuarei esta reflexão no post do mês que vem, que dará sequência a este, com o título Eterno verão.