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Eterno verão: considerações éticas sobre a nova era do amor em Frozen

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frozen-7Em meu post anterior, Elsa vai para as montanhas, analisei o filme Frozen, da Disney, procurando entender de que formas ele ecoa algumas propostas éticas de Nietzsche e de Freud. A jornada de Elsa no filme, afinal, diz respeito principalmente a uma luta interior na qual seus “poderes de gelo” — que podemos interpretar como representando seus impulsos — se opõem a seu ideal do eu (o da boa menina: comportada, controlada e mansa). No que considerei o ápice da jornada, Elsa vai para as montanhas e lá libera seus “poderes” e os utiliza criativamente, construindo um sublime castelo de gelo e transformando-se. Os ecos da superação de si proposta pelo Zaratustra de Nietzsche são, aí, bastante evidentes. Sua jornada não se encerra nesse ponto, porém: a percepção de que a liberação de seus poderes agride os outros — agressão representada pelo eterno inverno ao qual Arendelle ficou submetida após a liberação dos poderes gelados de Elsa — faz a protagonista dilacerar-se novamente em conflito interior. A resolução desse segundo conflito, com base no amor, associa uma nova “liberação” de Elsa ao bem comum. Estabelece-se, assim, o eterno verão.

Seguindo a esquematização que propus em Elsa vai para as montanhas, a relação da protagonista com seus impulsos pode ser dividida em quatro fases: a fase de repressão e medo do poder interior; a fase de liberação e autossuperação; uma nova fase de conflito interior, desencadeada pela culpa de ter causado sofrimento a outros; um controle não conflituoso do poder com base no amor. Se as duas ou mesmo três primeiras fases ecoam muitas das questões e propostas éticas de Nietzsche e de Freud, é preciso considerar que a quarta fase é completamente estranha a elas. Assim, encerrei o post anterior perguntando: que tipo de “amor” é esse que, no filme, integra tudo, levando a um estado de felicidade e plenitude? De onde teria emergido tal concepção do amor como uma espécie de energia integradora e redentora?

unthetered soulTrata-se, é preciso reconhecer, de uma questão difícil de responder, em parte devido ao grau de enraizamento de tal ideia em nossa cultura, que faz com ela permeie, em formas bastante variadas, uma infinidade de representações, de filmes da Disney a livros de autoajuda. Peguemos, por exemplo, o livro Alma livre, que figura, já faz tempo, na lista de bestsellers do New York Times. Trata-se de um livro de autoajuda baseado principalmente no zen budismo e no yoga, mas que, como é de se esperar, mistura de tudo um pouco em uma verdadeira salada espiritual. Em um dado momento, o autor Michael Singer ensina ao leitor: “se você quer paz permanente, alegria permanente e felicidade permanente, você tem que chegar ao outro lado do tumulto interior. Você pode experimentar uma vida na qual ondas de amor fluem dentro de você a seu bel prazer. Esta é a natureza do seu ser. Você simplesmente tem que chegar ao outro lado da psiquê” [1].

A “psiquê” seria, para Singer, a parte “inautêntica” de nós, essa que aparece nos mil e um pensamentos e sentimentos que ocupam nossas cabeças durante a vida cotidiana e que se transforma ou se extinguim poucos minutos depois. Por trás desse tumulto do mundo interior, estaria nosso “Verdadeiro Eu”, o Eu do amor, conectado com uma espécie de energia cósmica ou divina. A psiquê, ao contrário, seria a parte de nós presa aos objetos materiais, à opinião alheia e às regras sociais que orientam a vida ordinária. Para nos livrarmos dessa parte corrompida de nós, o imperativo que o autor nos indica é: let go!, expressão que aparece nada menos que 119 vezes ao longo do livro (sim, eu contei, com ajuda da ferramenta de busca do Kindle).

Obviamente, não é mera coincidência que letting go seja também o foco da segunda fase da jornada de Elsa. É preciso observar, porém, que há uma diferença importante entre o let go de Frozen e o let go proposto por Singer. O primeiro diz respeito principalmente a um deixar fluir o que até então estava reprimido, contido. O segundo diz respeito principalmente a deixar de lado o apego às regras sociais, ideais do eu, opiniões alheias e bens materiais. Ao mesmo tempo, percebemos que, apesar das diferentes ênfases, os dois sentidos também se misturam: liberar os impulsos é também se desapegar ao menos das regras sociais e do ideal de eu nelas embasado. E, do outro lado, o desapego das coisas inautênticas nos levaria de volta a uma suposta parte de nós na qual nossos impulsos se integram com um tipo qualquer de impulso cósmico, divino ou absoluto. Nessa conexão entre nossos impulsos e um “impulso cósmico” ou “energia cósmica”, podemos perceber alguns ecos do Amor redentor que promove o final feliz de Frozen.

Esses ecos ficam ainda mais claros se atentarmos para a descrição do fim da jornada interior proposta por outro “guru” da autoajuda, Shakti Gawain: “[ao final da jornada interior,] nós retornamos a uma experiência de nosso verdadeiro eu, a natureza divina ou a mente universal que se encontra dentro de todos nós. Através dessa experiência, nós eventualmente recuperamos todo o nosso poder espiritual; o vazio dentro de nós é preenchido de dentro, e nos tornamos seres radiantes, compartilhando a luz e o amor que vêm de dentro de nós com todos a nossa volta” [2].

Aqui, a ligação entre o poder espiritual (restaurado pela conexão com o absoluto) e o amor é feita de maneira explícita. De todo modo, essa ligação não é uma particularidade de Singer ou de Gawain. Até aqui, referi-me aos dois como “gurus da autoajuda”, mas é preciso ser mais específico. Não se trata de qualquer tipo de autoajuda, mas aquela que mistura alguns ensinamentos das formas tradicionais de espiritualidade, sobretudo as orientais, a messianismos diversos e a ideias psicanalíticas e românticas, construindo uma colcha de retalhos espiritual que normalmente classificamos com a expressão “new age” ou, aportuguesando, “nova era”. A nova era em questão seria justamente o momento no qual uma elevação da consciência humana instituiria o reino do amor, da paz e da luz na terra. Ou seja, o eterno verão!

cosmic loveO termo “nova era” é um tanto vago devido à infinidade de crenças e doutrinas misturadas que ele abarca. Podemos, porém, utilizar como guia o exaustivo estudo de Wouter Hanegraaff, Religião New age e cultura ocidental, no qual o autor expõe algumas das orientações mais relevantes e recorrentes dentro das correntes de pensamentos que normalmente associamos ao new age. Foi desse estudo que retirei a citação de Shakti Gawain reproduzida acima. Podemos encontrar nele, também, uma corroboração da relação estreita que existe entre o amor e uma espécie de “energia cósmica” no pensamento new age: “a energia vital [...] é frequentemente associada ao Amor. O conceito de Amor, nesse contexto, não é baseado em uma relação e dificilmente pode ser entendida como pessoal. Em vez de uma ação ou atitude, ele é, novamente, uma força ou energia: a “cola cósmica” que mantém o universo coeso” [3].

Ora, essa energia cósmica é também, portanto, a força da natureza — ou simplesmente, a natureza, aqui igualada a Deus, em um imanentismo de sabor spinozista –, o que permite compreendermos por que os “especialistas no amor”, em Frozen, são os trolls, ou seja, os seres integrados à natureza. Entendemos também a caracterização do amor como uma força, que aparece na música Fixer-upper, cantada pelos trolls quando eles encontram Anna e Christoph. “O amor é uma força poderosa e estranha”, dizem eles. Se as pessoas fazem más escolhas, é porque elas “estão com raiva, com medo ou estressadas” — ou seja, alienadas de si mesmas. Mas “jogue um pouco de amor em sua direção e você trará a tona o que elas têm de melhor” — o “Verdadeiro Eu” delas.

O Amor conecta, portanto, o melhor de nós com o melhor dos outros. O mal, segundo esse pensamento, provém do afastamento dessa fonte divina interior, o Amor. A fonte de tal afastamento é o “tumulto interior”, para recuperar a expressão de Singer. E, como vimos, esse “tumulto interior” está relacionado, ao menos em parte, à nossa estrutura psíquica baseada na opinião dos outros e nas regras sociais. É interessante observar o desprezo new age pelas regras sociais, uma vez que a coesão social deveria, na sua visão, provir do Amor, a única fonte autêntica de relacionamento, e não da falsidade das regras, dos costumes e da ordem estabelecida. É essa coesão social baseada no Amor que tem lugar no final de Frozen.

Ao atentarmos para certas orientações éticas do pensamento new age, foi possível, enfim, compreender melhor algumas fontes morais do amor redentor representado em Frozen. Falta, porém, refletirmos com mais cuidado de que maneira esse Amor se relaciona com os “poderes gelados” de Elsa e com sua jornada de liberação. Para fazê-lo, será interessante olhar com mais atenção para a oposição, proposta por Singer, entre a psiquê, parte inautêntica de nós, e o Self, nosso Verdadeiro Eu. Embora tal oposição possua, sem dúvida, ecos budistas (a fonte explícita do autor), em sua versão moderna e ocidental podemos remetê-la ao pensamento de Jung, uma das bases mais evidentes do pensamento New age.

É claro que a separação entre eu (a psiquê de Singer) e Self em Jung é um tanto mais refinada do que nos “gurus” da autoajuda new age. O eu aparece como o palco de uma luta entre a individualidade “falsa” dos papeis sociais — a persona –, os conteúdos do inconsciente pessoal — a parte principal da sombra — e os conteúdos do inconsciente coletivo. Quanto mais o eu se descola da persona e se integra aos conteúdos inconscientes, mais ele se aproxima do Self, embora uma identificação entre eu e Self seja, em última instância, impossível. A tensão que mais nos interessa aqui é a que se dá entre o eu e a sombra. A sombra é formada pelas potencialidades reprimidas, algo bem próximo do inconsciente freudiano. Ela é a “soma de todos os elementos psíquicos pessoais e coletivos que, incompatíveis com a forma de vida conscientemente escolhida, não foram vividos e se unem ao inconsciente, formando uma personalidade parcial, relativamente autônoma, com tendências opostas ao do inconsciente” [4].

trollsPartindo do referencial junguiano, se atentarmos novamente para as primeiras fases da jornada de Elsa, poderíamos descrevê-las assim: os poderes de gelo representam os poderes de sua individualidade, associada aos instintos. Uma individualidade poderosa é sempre aquela que deve se reprimir mais e mais para se adequar à persona — como consequencia, são justamentes essas individualidades poderosas que produzem uma sombra hipertrofiada. Os poderes de gelo representariam as potencialidades da sombra. Essa interpretação permite compreendermos a fala enigmática do mestre dos trolls para Elsa ainda criança: “seu poder continuará a aumentar. Há grande beleza nele, mas também grande perigo. Você precisa aprender a controlá-lo. O medo será seu inimigo”.

O medo em questão seria o medo da própria sombra. Este medo só torna a sombra mais problemática e autônoma, pois impede a integração dela ao eu. Seria preciso, em um trabalho interior, “conquistar” a sombra, como sugere o título de um livro de inspiração junguiana: Conquiste sua própria sombra [5]. O descontrole de Elsa que a faz fugir para as montanhas poderia ser encarado, aqui, como um extravasamento da sombra até então contida. Nas montanhas, Elsa libera sua sombra e a integra parcialmente ao eu, mas não há ainda um equilíbrio (o estado redentor em Jung) entre suas partes. Uma vez que associei anteriormente a ida de Elsa para as montanhas a propostas de Nietzsche, será interessante observar a opinião do próprio Jung a respeito da jornada nietzschiana:

Nietzsche perdeu o solo debaixo dos pés porque nada mais possuía senão o mundo interior de seus pensamentos — mundo que o possuiu muito mais do Nietzsche a ele. Ele estava desenraizado e pairava sobre a terra; por isso foi vítima do exagero e da irrealidade. Essa irrealidade representava para mim o cúmulo da abominação, pois o que eu visava era este mundo e esta vida [6].

Seria esse, em uma perspectiva junguiana, o estado de Elsa em seu castelo de gelo: muito mais possuída por seus poderes do que deles possuidora. Tal estado seria problemático para Jung, aparentemente, por estar afastado das questões ordinárias da vida, como aquelas relativas aos vínculos sociais. A nova crise de Elsa prefigura, portanto, sua saída da “irrealidade” e seu retorno ao que Jung chama de “esta vida e este mundo”. Esse retorno gera a segunda crise, finalmente resolvida pelo poder transformador do Amor.

É interessante observar, então, que a jornada interior de Elsa aparece aqui como uma espécie de condição necessária para o estabelecimento posterior do eterno verão. Antes, quando os poderes eram suprimidos em Arendelle pela ordem e pelo segredo, a sombra somente crescia sem, entretanto, revelar-se. A jornada interior de Elsa, completada com o fluir de ondas de amor, para usar o vocabulário new age, é a base da redenção de toda Arendelle. Essa redenção social proporcionada pelo trabalho interior talvez seja uma das ressonâncias mais evidentemente junguianas de Frozen. Basta considerar a resposta de Jung  quando perguntado sobre a possibilidade de um destino feliz para a humanidade durante as épocas tensas da segunda guerra e da guerra fria: “se um número suficiente pessoas realizar seu trabalho interior…” [7].

O pensamento de Jung e a mentalidade new age nos oferecem, então, algumas bases para uma interpretação da jornada de Elsa e do eterno verão em Frozen. Vale frisar, nesse final de post, que o tipo de análise aqui proposto não pretende encontrar nenhum interpretação “verdadeira” do filme, tampouco uma interpretação que dê conta de tudo aquilo que nele acontece, como se sua verdade estivesse cifrada em seu roteiro de antemão. O ponto da análise é perceber os ecos de algumas orientações éticas que continuam a reger nossa relação com o mundo, com os outros e conosco em produtos midiáticos aparentemente despretensiosos. É importante perceber que muito daquilo que tendemos a encarar como “natural”, principalmente no que diz respeito aos valores, costuma ser muito mais uma mescla obscura de orientações morais cujo delineamento e defesa podem ser encontrados em pensadores como Nietzsche, Freud, Jung, e, de maneira mais confusa, nas propostas de certos movimentos  — aos quais nos referimos com expressões vagas como “new age” — que marcaram certa época e/ou local, e que continuam a nos influenciar, das maneiras mais inesperadas.

Notas
[1] SINGER, M. The Untethered Soul: The Journey Beyond Yourself. Kindle edition. Okland: New Harbinger, 2007, loc. 1936.
[2] HANEGRAAFF, W. New age religion and western culture: esotericism in the mirror of secular thought. New York: Brill, 1996, p. 205.
[3] HANEGRAAFF, W. New age religion and western culture: esotericism in the mirror of secular thought. New York: Brill, 1996, p. 186-187.
[4] Glossário em JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 410.
[5] JOHNSON, R. A. Owning your own shadow: understanding the dark side of the psyche. Kindle edition. New York: Harper Colins, 1991.
[6] JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 195.
[7] citado em JOHNSON, R. A. Owning your own shadow: understanding the dark side of the psyche. Kindle edition. New York: Harper Colins, 1991, loc. 878.


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